Por Orna Ben Dor

Traduzindo: Andrea Faria do Amaral

 

Por um lado, Steiner nos ensina que o egoísmo é a fonte de todo mal no mundo, mas por outro lado ele afirma que a conquista da independência e da autoconfiança requer uma violação dos princípios morais socialmente orientados e a adoção do egoísmo. Esse artigo explora por que o mal é necessário e fundamental para o desenvolvimento.

Steiner argumenta que em todas as épocas existem algumas pessoas que avançam a humanidade. Essas pessoas continuam a reencarnar e assumem diferentes papéis. Na transição entre o período atlântico e os nossos dias, um certo grupo de pessoas sobreviveu à catástrofe referida na Bíblia como o “Dilúvio”. Esse grupo gerou uma nova civilização. Steiner acreditava que no futuro, no final do “período pós-Atlântico”, uma ‘Guerra Total’ iria estourar. O Apocalipse, a guerra do bem contra o mal, será travado por aqueles que estão sendo treinados agora.

Só quem não tem coração mole nem é ingênuo, pode assumir esse papel. Quem não conhece o mal não pode pertencer a esse grupo e, segundo a crença Antroposófica, o treinamento para essa parte decisiva já começou em vidas anteriores. Esse grupo cármico geralmente participa de eventos históricos decisivos, por exemplo: guerras, cruzadas, etc. “A característica comum de todo mal não é senão o egoísmo”, afirma Steiner, e acrescenta: “Todo mal humano se origina do egoísmo” (1).

“…A característica comum de todo mal não é outra coisa que o egoísmo (…) todo mal humano procede do que chamamos de egoísmo. O egoísmo é, portanto, o traço fundamental que está por trás de todo o escopo e gama do ‘errado’, desde o menor descuido até o mais grave crime, esteja a origem da imperfeição ou do mal mais no corpo ou na alma…e o caminho que conduz para além do mal aqui no mundo físico, é aquele no qual combatemos o egoísmo. ” (1)

De fato, Steiner declarou, inequivocamente, que a fonte de todo mal está no egoísmo e que o mal só poderia ser conquistado através de uma luta contra o egoísmo. No entanto, imediatamente após esta afirmação resoluta, Steiner apresenta o problema que ela embute:

“Ao lado dessa constatação, temos que admitir outra que
nos confronta em nossa pesquisa espiritual como algo de natureza bastante angustiante. Pois, quando examinamos as faculdades e capacidades que precisamos desenvolver para nos elevarmos ao mundo do espírito, aos mundos que só podemos perceber em um estado sem corpo, quando consideramos os
exercícios da alma que devem ser praticados para ascender a este mundo, nós descobrimos que qualidades e características bastante particulares devem  ser fortalecidas na alma. Estas são aquelas que no mundo dos sentidos tornam a alma mais forte, mais independente e autossuficiente. Qualidades em outras
palavras que, no mundo físico dos sentidos, aparecem como egoísmo, devem realmente ser fortalecidas e intensificadas  para nos permitir ascender ao mundo do espírito.”(1)

Assim, encontramos um paradoxo. Por um lado, encontramos a afirmação de que o egoísmo é a fonte do mal do mundo – o ser humano se concentra em si mesmo, desconsiderando o “outro” como um “self”, (ser dotado de um Eu) violando assim princípios éticos. Por outro lado, Steiner argumenta que, para alcançar força mental, independência e um senso de autoestima, uma pessoa deve necessariamente contrariar os fundamentos do altruísmo e se tornar egoísta:

“Em seu sentido literal, o egoísmo é a característica que impele um homem a dar o primeiro lugar à sua própria vantagem e ao aprimoramento de sua própria personalidade, enquanto seu oposto, o altruísmo, visa colocar as faculdades humanas a serviço dos outros, de fato, do mundo inteiro”. (2)

O paradoxo do “Eu”, definido por Steiner como uma faca de dois gumes é crucial, pois toca justamente no ponto de encontro entre desenvolvimento e petrificação:

“Por um lado, este “Eu” é a causa do homem endurecer em si mesmo e desejar colocar a serviço de seu “Eu” suas capacidades internas e todos os outros objetos à sua disposição […] Por outro lado, ele não deve esquecer que o “Eu” é, ao mesmo tempo, aquilo que dá ao ser humano sua independência e sua liberdade interior – que no verdadeiro sentido da palavra, o eleva. A sua dignidade está fundada nesse “Eu” e é a base do Divino no homem” (5).

Examinemos agora alguns aspectos do egoísmo que não foram levantados por Steiner: a relutância em dar ou compartilhar com os outros, a mesquinhez (mesmo em relação a necessidades menores), o esforço para atingir suas metas independentemente do preço que os outros possam pagar, um senso de superioridade, sentimentos de direito, arrogância, exploração dos outros, fanatismo e ambição extrema – tanto material quanto espiritual – muitas vezes à custa dos outros. Alguns desses traços podem ser encontrados em pessoas com status, com missão espiritual, que podem ter avançado inicialmente justamente por essas características.

Para descrever a contradição entre o valor moral problemático do egoísmo e sua necessidade, Steiner fornece a alegoria da rosa:

“A planta toma para si tudo que precisa para crescer; não pergunta por que ou para quê; floresce porque floresce e não se importa a quem isso diz respeito. E, no entanto, é retirando do meio ambiente suas forças vitais e tudo o que necessita para si mesma, que a planta adquire qualquer valor que possa ter para o meio ambiente e, finalmente, para os homens. De fato, atinge o mais alto grau de utilidade que pode ser imaginado para um ser criado, se pertence àqueles reinos do mundo vegetal que podem ser úteis aos seres superiores. E agora será uma trivialidade corriqueira repetir aqui um ditado familiar, embora tenha sido citado com tanta frequência:

Quando a rosa se enfeita, ela enfeita o jardim” (2)

O exemplo da flor enfatiza, assim, o benefício mútuo de extrair do ambiente e retribuir a ele. Cada ato de doação começa com um ato de receber – extrair recursos do ambiente para crescer e expandir. Até mesmo as hierarquias espirituais que visam a doação pura, já estiveram na extremidade receptora. Isso pode ser visto como o estágio egoísta em que “nós olhamos para as alturas espirituais, para seres super-humanos, e estes se tornam cada vez mais poderosos”. Esse poder, argumenta Steiner, é adquirido pelo fato de que: “eles exigem algo do mundo, e que mais tarde desenvolvem, até o ponto em que eles mesmos têm algo a dar”. Assim, conclui: “todo o sentido e o espírito da evolução repousam no fato de que passamos do receber ao doar. ” (3)

A história está repleta de pessoas espiritualmente orientadas, que mostraram tendências egoístas e cometeram atos imorais para alcançar seus objetivos. De fato, deve-se supor que ferramentas significativas para o benefício da humanidade são muitas vezes alcançadas pela violação de códigos morais e são aplicadas por aqueles com uma missão espiritual. Por exemplo: uma criança rebelde, teimosa, egoísta, que “dá trabalho aos pais” e não é obediente e bem-comportada, pode ser vista como alguém que cria ferramentas importantes para um futuro espiritual.

Critérios de Resultado

Ações antiéticas que eventualmente beneficiaram o mundo só podem ser reconhecidas em retrospecto. Por exemplo, na história bíblica, Rebeca, que deseja que seu filho Jacó receba o direito de primogenitura, concebeu um plano para permitir que ele o privasse de seu irmão, Esaú. A ação é imoral, mas essencial para a história do povo de Israel e da humanidade como um todo. Além disso, o rei Davi enviou Urias para morrer em batalha porque cobiçava a esposa deste último, Bate-Seba. Natã, o profeta, repreendeu Davi por seu pecado, mas essa transgressão deu origem a Salomão – um rei notável e o homem mais sábio que já viveu.

Outro exemplo famoso é Sócrates, um dos principais filósofos gregos e um dos principais fundadores da filosofia ocidental, considerado um pecador. De fato, de acordo com as normas da Grécia Antiga, ele corrompeu os jovens incutindo ideias inaceitáveis ​​e promovendo a heresia. É importante notar que atos imorais não ficam impunes. Em termos de Carma, cada ato é recompensado. Deve-se ter em mente, ao mesmo tempo que, quando um indivíduo comete más ações, ele/ela adquire habilidades que podem eventualmente conduzir ao desenvolvimento espiritual e à doação.

É claro que essa complexidade moral não significa um estado de anarquia ética. A moralidade é fundamental para a sociedade humana – quando o “Eu” se desenvolve, a moralidade surge natural e livremente. Essa é a moral por vir, que não nasce do dever, mas emerge do amor. Como enfatiza Steiner, “atingimos os mais elevados princípios éticos e somos capazes de entendê-los apenas no final de nossa busca pela sabedoria. ” Como ele afirma ainda: “comunidades e atividades morais e sociais não podem existir sem ética ou moral. ” (4)

Eu Primeiro

Atributos morais que são desenvolvidos prematuramente como doação, sacrifício, etc., podem enfraquecer o Eu. O altruísmo que visa agradar ou qualquer doação que procure impedir o encontro com o Eu, pode parecer positivo, mas em última análise, reduz o Eu como: “tudo o que faz com que um homem se esforce para perder seu “Eu” e dissolvê-lo em uma consciência universal, é o resultado da fraqueza. ” (5)

Muitos se juntam ao coletivo que promove valores éticos por medo e aversão ao mal, renunciando assim aos seus “Eus” em benefício de ideais gerais. Cada coletivo essencialmente incorpora os ideais de um Eu individual com os de um Eu coletivo. Este último constitui uma ilha de virtude absoluta, às vezes para evitar o mal. Assim, cria-se um mundo aparentemente benevolente, mas o mal não desaparece. Pelo contrário – muitas vezes é monstruoso, pelo fato de não ser tratado. Essa posição pode ser vista em regimes fascistas e comunistas, e atingiu seu ápice no nazismo. Também pode ser encontrado em grupos menores, como por exemplo: seitas, comunas e clãs. No entanto, aqueles que passam pelo mal, o digerem e lidam com ele, eventualmente ficam imunes e podem resistir à malevolência. Para enfrentar a maldade externa, um indivíduo deve primeiro encontrar o mal dentro de si. O triunfo vitorioso sobre o mal interior gera maior benevolência. De fato, Steiner afirma que a capacidade de vencer o mal produz seres humanos maiores: “Não devem pensar que o mal não tem parte no plano da criação,  ele escreveu – “ele existe para que, por meio dele, possa vir um bem maior. ” (5)

Uma pessoa que adere à moral existente e prega o altruísmo, é comparada por Steiner a um macaco que entra em uma sala fria e exige que o aquecimento seja ligado, sem entender o que isso exige dele, e sem perceber a necessidade real. Assim como o macaco, que não pensa em aquecer a sala, os seres humanos não imaginam agir por altruísmo, mesmo que sejam ordenados a praticá-lo repetidamente.

A verdadeira mensagem não é produzida por concepções ou pregações, mas como parte da experiência humana de pertencer ao mundo. Depois de moldado pelos recursos do mundo, ou seja, após o estágio egoísta, o indivíduo dá uma guinada e aplica esses recursos em direção a uma compreensão benevolente e benéfica do mundo e a uma doação aprimorada: “Assim, o homem cumprirá melhor sua existência se extrair o máximo possível do mundo exterior e fizer tudo, o seu máximo, o que pode florescer e frutificar em si mesmo”. (2)

Bibliografia:

* Salvo indicação em contrário, todas as citações foram retiradas do Rudolf Steiner Online Archive.

1 Steiner, R. (1914),’Spiritual Science as a Treasure for Life’,  lecture 6, ‘The Evil’, GA63
2 Steiner, R. (1909), ‘Metamorphoses of the Soul’, Paths of Experience’, Vol. 1, Lecture 7: Human Egotism, GA58
3 Steiner, R. (1909), ‘The Spiritual Hierarchies, Their Reflection in the Physical World’, Lecture 4, GA 110.

4 Steiner, R. (1912), ‘The Spiritual Foundation of Morality’, Lecture 1, GA155
5 Steiner, R. (1908), The Apocalypse of St. John, Lecture 8, GA 104

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